O afeto que não se encerra em Lia Menna Barreto

por Alexandre Antunes¹
-
-
Lia Menna Barreto, 1998. Boneca com vida/ Sistema dependente/ Ecos da influência. Obra exibida em 2000, em exposição individual na galeria Camargo Vilaça - São Paulo.
-

-
O que vem sendo apresentado ao longo de sua trajetória como artista é constituído pela apreensão das coisas no mundo, nas funções da casa, levando a filha na escola ou mesmo tratando dos animais domésticos, através de um percurso tão importante Lia Menna Barreto subverte a lógica da previsibilidade.
-
Imagens que num primeiro momento desconsertam o espectador- alguns para sempre- sugerem através dos nomes para instalações ou trabalhos uma imersão em sua poética ao derreter objetos de borracha com ferro de passar roupa, o que antes era volume agora é plano, vários planos constituindo novas imagens numa ácida dialética, manipulando o avesso da matéria em ações como gestos de afeto lançados no universo.
-
Diário de uma boneca: produção de uma boneca por dia durante um ano, Bonecas com plantas: cuidados e observação do tempo no desenvolvimento botânico, A Fábrica : produção contínua de tapetes com animais de borracha derretidos durante a Bienal do Mercosul, auxiliada por estudantes remunerados, Exercícios Afetivos: bonecas doadas por diversas pessoas a seu pedido gerando uma instalação no MARGS, dispondo numa das paredes os nomes dos colaboradores artistas e não artistas, Máquina de Bordar, Kit Afetivo, Ordem Noturna, Tapete de Sapos, Pintura de Taiwan, Casca de Boneca...

No seu processo de elaboração não há uma alquimia perversa ao utilizar-se de arquétipos reconhecidos, existe uma subjetiva delicadeza nesta complexa relação entre artista e espectador. Lia é uma artista que exercita estratégias ao ativar reflexões que se manifestam como intuições ordenando a matéria numa expansão de gestos aquecidos, sempre com atenção voltada para onde serão instalados seus trabalhos, sabendo obviamente que todo objeto é transfigurado em função do local específico, podendo ser lugares com visíveis marcas do tempo, ou espaços puros, brancos e assépticos. Possuo uma de suas cabeças de boneca-plantas, o que permite ter mais do que uma atitude passiva como espectador. Neste período mudei de moradia, cidade, estado, levando este objeto e observando as transformações naturais influenciadas pelos ambientes, adaptações climáticas, diferentes terras adubadas e descobertas de espécies. Ao olhar para a cabeça diariamente consigo identificar cada planta e seu exato momento de inclusão-plantio como natureza cognitiva, além de uma lembrança dos lugares que passei tratando-a não como vaso, mas algo pulsante para um tráfico constante de insetos e raízes entrando e saindo pela boca, olhos, orelhas e cabelo. Preocupo-me em não deixar que as plantas morram, mesmo sabendo caso isto ocorra, terei a condição de refazer o ecossistema numa operação botânica e estética configurando assim um sentido da arte como ética aplicada, tornando-me íntimo ao estabelecer esta cumplicidade num monólogo, indo além dos diálogos disparados por espectadores involuntários que normalmente reagem com estranhamento. Sua produção não pressupõe um método a seguir com regras deterministas. O estúdio funciona como local para organizar idéias alternando projeções de toda a natureza circundante ao meio ambiente, e o lugar para insights do artista continua sendo o mundo. Na casa que vive consigo fazer uma analogia com seu trabalho, onde pude acompanhar parte do processo de sua construção tomada hoje pela natureza com muitas espécies vegetais agregadas à arquitetura. O terreno que antes era árido tornou-se fértil. Constato que alguns artistas acabam sucumbindo nas próprias armadilhas formalizadas em suas trajetórias, não é o seu caso, pois como uma fênix ela trata de incinerar sua fantasmagoria reinventando seu fazer. O acaso se encerra na desmaterialização, mas o afeto nunca, valorizando a intuição no processo de qualquer artista, sendo mais do que uma elaboração construtiva para a matéria expandida. Lia desenvolve uma investigação profícua relacionada ao imaginário habitado da nossa infância, distinta de uma complexa abordagem para traumas infantis. Lembro de uma imagem-situação quando criança ao comer determinadas frutas, tinha a preocupação em não engolir as sementes acreditando que isto faria brotar uma árvore saindo seus galhos pelos orifícios do meu corpo. Ao investigar alguns campos do conhecimento, obtemos conceitos epistemológicos que nos possibilitam um cruzamento de linguagens através da inteligência sensível, aprofundando experiências ativadas por olhares menos apressados ou vícios característicos do senso comum, criando mecanismos para os sentidos como outros paradigmas avessos ao uso da razão. O caos da existência. O devir na experiência.



abril / 2010.
_________________________________________________________
¹ Alexandre Antunes - artista visual, nasceu e vive em Porto Alegre, cursou Filosofia no IFCH/UFRGS de 1995/1999, morou na Enseada das Garças/ES, Florianópolis/SC e Santiago do Chile, onde realizou uma exposição individual na galeria Bucci no período de 1996/1997. Participou de diversas exposições coletivas e realizou dez individuais. Atua como escritor, curador, editor, revisor com Edmilson Vasconcelos no web site: www.dobbra.com/terrenobaldio.htm