Alguns Comentários sobre a pintura de Julio Ghiorzi

por Paula Ramos¹
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"El Conejo". Pintura, acrílico sobre placa de celulose compactada e madeira138 x 138 cm. Julio Ghiorzi (1998). Prêmio Incentivo à Criatividade - XIII Salão de Artes Plásticas Câmara Municipal de Porto Alegre / XXIV SARP - Salão de Artes de Ribeirão Preto.



A experimentação e o estranhamento estão radicados na poética de Julio Ghiorzi. E isso vem de longa data. Fazendo um rápido passeio pela sua obra, percebemos claramente esse eixo. Se tomarmos as suas pinturas da década de 1990, com representações de cães, gatos, ratos e homens soturnos, todos envoltos na densa atmosfera da arte holandesa seiscentista, vestidos de preto e com suas vistosas golas brancas rendadas, temos, no mínimo, um conjunto figurativo fora do comum. Precisamos também reconhecer que as obras posteriores, em que Ghiorzi deslocou ícones da arquitetura moderna para paisagens renascentistas, com toda a sobriedade característica do período, eram igualmente insólitas. Com essas imagens, ao jogar com a temporalidade, ele nos incitou a articular complexas relações de forma e tempo, espaço e lugar. E o que dizer das pinturas gêmeas? Essas são ainda mais perturbadoras. Primeiramente, porque se trata de imagens espelhadas, derivadas de um processo híbrido entre gravura e pintura; e, depois, porque a tinta utilizada não é nada, absolutamente nada, convencional: esmalte sintético automotivo. Quando cores diferentes dessa mesma tinta entram em contato, elas reagem instantaneamente, com autonomia e intensidade sobre as quais o pintor não tem qualquer domínio. O resultado acaba sendo uma surpresa tanto para o espectador, quanto para o próprio artista.

É também por essa extravagante, porém coesa, trajetória, calcada na investigação matérica e na visita à própria história da pintura, que nem se fica assim, tão surpreendido (!), quando o artista diz que suas novas imagens surgiram a partir da descoloração do jeans com hipoclorito de sódio, a popular água sanitária... Sim, você leu certo: descoloração do jeans com água sanitária.

A idéia de trabalhar com jeans surgiu há cerca de três anos, quando Julio ainda vivia em Goiânia. Lá, aceitou a proposta de uma empresa fabricante do tecido, de usá-lo para algumas criações. Entretanto, a mera troca do suporte tradicional pelo de algodão índigo soou-lhe demasiadamente óbvia. Ele não via sentido em pintar sobre o jeans. Era necessário mais. Era necessário compreender a natureza do material para poder explorar as suas especificidades. E foi o que fez. As duas mais notáveis características do tecido como que lhe saltaram: (1) ele desbota; (2) ele facilmente absorve sujeira, a ponto de podermos dizer que a sujidade integra o seu repertório expressivo. Ou seja, de um lado há a perda de pigmentação e, de outro, o ganho. Compreendidas essas peculiaridades, pareceu-lhe evidente usar água sanitária para provocar o descoramento e, mais tarde, a terra para dar o caráter enodoado. A questão era como fazer isso.
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O Método
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A lógica desse processo não poderia ser a mesma lógica do ateliê. Primeiramente, a imagem pode levar dois a três dias para começar a surgir. Depois, para atingir o desbotamento total, são necessárias cerca de seis camadas do líquido, e elas devem ser aplicadas sempre sobre o tecido seco. Ghiorzi também percebeu que o seu reagente alcançava melhores e mais rápidos resultados quando exposto ao sol. Assim, viu-se convidado a abandonar o ateliê e a encarar o espaço externo; traduzindo: a luminosidade, o ar seco e o calor estarrecedor de Goiânia. E ao seu kit de trabalho, além dos pincéis e sprays, foram incorporados garrafa com água, filtro solar, óculos de sol, boné...

Durante a feitura das imagens há, naturalmente, um novo raciocínio, uma vez que Julio não está trabalhando com adição de pigmentos, com tintas sobrepostas no suporte e que criam manchas na tela. Seu processo é inverso, é de eliminação. Onde ele aplica o hipoclorito de sódio há perda de pigmentos e conseqüente ganho de luz. Nesse sentido, assim como o que já havia acontecido com as pinturas gêmeas, seu procedimento é um híbrido entre a gravura e a pintura. Há também um parentesco com a aquarela, uma vez que não se pode voltar: uma pincelada de água sanitária significa tons mais esmaecidos. A pintura possibilita a volta, mas esse processo, não. Todos esses fatores obrigaram Julio a se reorganizar, a pensar visualmente de uma outra forma.

Por fim, a inserção do elemento terra, que não é tratado como um simples pigmento, mas como um colorante, no sentido do material usado para tingidura do jeans. Nessa etapa, o artista prepara uma solução composta de água, terra e emulsão acrílica, na qual mergulha os tecidos. Esses depois são escovados no chão e pendurados no varal, como uma velha calça jeans. Nova cartilha de pintura.
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Os Temas
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Mantendo a sua tradição figurativa, Ghiorzi revisita alguns dos grandes gêneros e pinturas da História da Arte. Ali estão citações de As Meninas, de Velázquez, A Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, A Paisagem de Delft, de Vermeer. Estão também representações ou retratos, como o de Andy Warhol, do Buda e do Frankenstein imortalizado no cinema por Boris Karloff no filme homônimo de 1931. Há, ainda, uma natureza morta com frutas, que funciona como um inusitado índice de Carmem Miranda.

Esses motivos têm um tom pop e, naturalmente, de reverência. Quase todos, inclusive, são conhecidos pelo grande público e proporcionam uma imediata empatia. Ghiorzi admite que, embora tenha um especial carinho pelos temas tratados, adotou-os muito mais por eles serem de rápida identificação. O seu interesse não era discorrer sobre eles, mas sim propor um debate acerca do discurso da pintura que passa pela técnica. E as suas imagens permitem isso, uma vez que são fruto de um procedimento mestiço cujo resultado é pictórico. Tal reflexão está, portanto, incorporada ao processo e à obra acabada. É nesse âmbito que reside a potência maior de sua poética.

A pesquisa visual a que vem se dedicando Julio Ghiorzi guarda, inegavelmente, preciosas coerências. De suas pinturas podemos esperar sempre um denso rigor técnico, um refinado exame de materiais e uma sedutora singularidade, qualidades que vêm abrindo caminho para distintas e inusitadas investigações.



Julho/2006._________________________________________________________
¹Paula Ramos é Crítica de arte, Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS/2007).