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Anatomia do Corpo Expandido



Após minha visita ao apartamento-atelier de Ingrid Noal, saí com a nítida sensação de passar algumas horas tendo uma lição de anatomia do corpo humano, algo que me deu muito prazer e maior conhecimento a respeito de sua produção. Alguns pares de pés de gesso e cimento instalados no meio do caos criativo, relativos a uma experiência clássica de fazer escultura, mas transfigurados por um olhar contemporâneo de apresentação do mundo, onde cada pé contém características próprias das pessoas que serviram de modelo neste projeto. 



Ao direcionar seu foco num membro específico do corpo, Ingrid aciona um cálculo proporcional, possibilitando ao espectador imaginar precisamente que altura aquele corpo ocuparia no espaço. Veias, músculos, sinais particulares e suas imperfeições constituem esta coleção que a artista persegue obsessivamente em partes que saem de formas constantemente, assim como o silicone utilizado no processo de construção em série que cumpre a função de uma pele ao descolar cada membro, resultado que algumas vezes incorpora partes e cores como pigmentos que se fundem na matéria, tornando inusitada esta operação organizada e estabelecida numa ordem de fundamento categórico: o ser humano com fim em si mesmo


É significativo o fato de sua escolha inicial ter sido a música, a ponto de decidir viajar para alguns países e caminhar por outros territórios, onde descobre que o mundo ampliado das imagens era cada vez mais objeto de seu interesse como artista. Ao tocar violino – instrumento escolhido – executava a música em pé, procedimento que aparece também nas imagens fotográficas, sugeridas ao espectador em poder completar este corpo ausente com sua presença, qual um músico e seus pés servindo de sustentação para manter o equilíbrio e distribuir de maneira uniforme seu peso, expande assim nossos sentidos ao intervir nas ruas da cidade ou em alguma praia do litoral, ao ar livre, saindo do particular para encontrar um universo de possibilidades. O que fica não é apenas o registro da ação, mas a intenção de compartilhar aquilo que está para além do objeto. 


Todo artista quando pensa seu trabalho utiliza o corpo inteiro, mesmo em estado de repouso. Ingrid Noal estabelece um ritmo próprio para melodias internas durante o processo de elaboração poética, seguindo passo a passo, sem pressa, apenas com o tempo a seu favor.


Alexandre Antunes¹
abril   2011             























Texto de apresentação da exposição Corpo Expandido de Ingrid Noal realizada no período de 15 de maio à 04 de junho de 2011, no Jabutipê Rua Cel. Fernando Machado, 195. Centro Histórico / Porto Alegre – RS – Brasil.
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¹ Alexandre Antunes - artista visual, nasceu e vive em Porto Alegre, cursou Filosofia no IFCH/UFRGS de 1995/1999, morou na Enseada das Garças/ES, Florianópolis/SC e Santiago do Chile, onde realizou uma exposição individual na galeria Bucci no período de 1996/1997. Participou de diversas exposições coletivas e realizou dez individuais. Atua como escritor, curador, editor, revisor com Edmilson Vasconcelos no web site: www.dobbra.com/terrenobaldio.htm

360° entre ações e palavras de Lilian Maus

por Alexandre Antunes¹


Projeto de instalação. Foto de divulgação da exposição "Tramas diárias" , Museu do Trabalho, Porto Alegre, RS. Fotoperformance de Lilian Maus. Photo by Túlio Pinto




Escrever a partir de uma produção de desenhos até certo ponto seria fácil porque ele encontra-se em tudo, porém não é este o caso específico que irei aqui abordar. Quando falo em não dificuldade, isto não implica uma diminuição de sua importância, ao contrário, nunca se viu tanta produção de novos artistas pensando o desenho e sua expansão. O que é o caso de Lilian Maus, onde também aos poucos fui descobrindo outros aspectos ainda não revelados dentro de seu trabalho. Isto se deu na medida em que nossa relação foi se estabelecendo num dos meios em que me encontro agora, o uso das palavras e o que isto implica como interlocução. A fala nos aproximou, pois ali são os diálogos que saem do corpo num fluxo para serem construídas novas possibilidades que ficam impregnadas no outro durante um tempo específico, ou mesmo para toda a vida, sendo isto o que denominamos de conhecimento como via de mão dupla, onde as idéias não soam apenas enquanto ecos. Como movimentos contínuos, onde criamos estratégias para poder organizar a experiência que vai sendo adquirida na sua inconstância. Sempre que encontro com a produção da Lílian, meus pensamentos são lançados com uma energia infinita, contaminando espaços tanto num suporte como papel, ou na parede de alguma arquitetura escolhida de forma nada aleatória pela artista. Uma parada de ônibus como um lugar para descansarmos aguardando o transporte que irá nos levar de um ponto a outro, neste caso ao interferir com palavras desenhadas, Lilian ressignifica o cotidiano escapando do comum senso ao disparar pensamentos para aqueles que esperam por algo na vida. O passageiro que aguarda o transporte suprindo do gesto demarcado pela artista no abrigo parado, descansando através de uma reflexão silenciosa, onde a dimensão e o tempo para cada um é sempre distinto, mesmo quando nos encontramos organizados em coletivos. Percebi o fluxo da produção de Lilian pela primeira vez, quando estive numa exposição individual que ela inaugurava em um espaço pequeno chamado não por acaso de Microgaleria, lugar de muito contato físico pela sua dimensão, propiciando aos espectadores uma íntima imersão naquilo que era apresentado pela artista. Lembro que seu universo foi sendo revelado através dos cadernos autorais contendo textos-desenhos, novamente palavras e desenhos, descrições de uma biodiversidade de interesses atravessado por uma poética que raramente encontramos na arte. Parte de sua biografia que nos era autorizada a compartilhar, isto por mais clara que fosse sua intenção de modo algum era óbvia, causando uma sensação de completarmos seu trabalho que parece estar sempre em construção, estabelecendo assim uma viagem sem volta como leitores particulares de sua obra. Lilian Maus consegue transmitir uma atmosfera que denomino de quase literatura, porque suas ações se dão através de uma fina camada transparente dos sentidos como um vidro coberto pela poeira acumulada, onde ao limpar algumas áreas da superfície com palavras revela uma paisagem agora não só imaginada, mas palpável através do olhar antes embaçado pelo tempo, colocando o espectador num estado de espírito de quem se deixa levar pelas lembranças, sonhos e imaginação como num teletransporte girando 360° numa velocidade inconstante. Seus grandes desenhos exigem uma disciplina corporal, resultando em outros estados de atenção e atitudes frente à ação empreendida, buscando um conforto na obtenção dos resultados projetados para onde e como serão apresentados. O que vemos são atos fluídos da artista onde ela ao mergulhar, aponta para uma ampla região que seus desígnios nos conduzem, como num simples ato de enrolar no dedo um fio de cabelo recolhido após o banho.



Julho  2010

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¹ Alexandre Antunes - artista visual, nasceu e vive em Porto Alegre, cursou Filosofia no IFCH/UFRGS de 1995/1999, morou na Enseada das Garças/ES, Florianópolis/SC e Santiago do Chile, onde realizou uma exposição individual na galeria Bucci no período de 1996/1997. Participou de diversas exposições coletivas e realizou dez individuais. Atua como escritor, curador, editor, revisor com Edmilson Vasconcelos no web site: www.dobbra.com/terrenobaldio.htm

André Venzon: um olhar que atravessa

por Paula Ramos¹


André Venzon. "Boate", 2006.


A obra de André Venzon é articulada, preponderantemente, a partir de fragmentos. Extratos de imagens, objetos, palavras e lugares constituem a matéria-prima do artista. Nesses fragmentos lateja a memória; por meio deles a fantasia é alimentada. Venzon sabe disso e explora, em suas obras, essa capacidade de investimento psicológico dos signos, apostando no reconhecimento, na rememoração e no imaginário dos espectadores.

Observador atento às pulsações do urbano, o artista trafega pela cidade reconhecendo as identidades regionais, os aspectos que distinguem determinados espaços, que acionam o dispositivo da lembrança. Desde o início de sua trajetória artística, há pouco mais de dez anos, tem buscado estabelecer pontes formais e conceituais entre o lugar e o sujeito, entre aquele que vivencia e aquilo que o envolve, alinhavando múltiplas temporalidades. Diversas vezes, opera no sentido de tornar novamente visível algo que já não mais existe. É o caso do monumento ao centenário da imigração israelita para o Brasil, localizado junto ao Parque Farroupilha, em Porto Alegre. Neste trabalho, executado em 2004, Venzon reproduz em concreto e quartzito rosa um detalhe da fachada do antigo cinema Baltimore. Durante décadas o pequeno complexo de salas de exibição funcionou na avenida Oswaldo Aranha, no bairro Bom Fim, um dos eixos da comunidade judaica na capital sul-rio-grandense. Hoje o Baltimore não existe mais; antes dele, no mesmo lugar, foi erguida a primeira escola semita de Porto Alegre; atualmente, a área é ocupada por um estacionamento. Nesse anacronismo de forte carga simbólica, o memorial erigido a partir do fragmento pode nos reportar tanto a possíveis momentos vividos naquele ambiente, como à fragilidade de nossas políticas de preservação.

A consciência histórica e a crítica às relações de poder percebidas nos espaços urbanos despontam em vários trabalhos de Venzon que, na década de 1990, chegou a estudar Arquitetura e Urbanismo, embora sem concluir. Na série Fechamento, por exemplo, realizada entre 2003 e 2006, ele fotografou avenidas, prédios, conjuntos habitacionais que haviam sido segregados do olhar do transeunte por meio de madeirites. Madeirite é a denominação usual empregada para indicar um tipo de compensado precário, tradicionalmente adotado na construção civil, sobretudo para isolar as áreas que estão sendo edificadas. Com o objetivo de chamar a atenção do público, o madeirite é quase sempre pintado de fúcsia, um rosa forte, próximo ao magenta. Venzon incorporou esses elementos de tal forma à sua poética, que hoje constituem uma verdadeira “marca registrada” do artista. Eles estão nos já citados Fechamentos, em instalações e obras in situ apresentadas em várias cidades do país, e na pungente série Cidade sem Face (2005), realizada em parceria com Igor Sperotto. Nessa última, Venzon fotografou pessoas junto a calçadas, diante de casas quase sempre com janelas e portas fechadas. Todas aparecem de corpo inteiro, sozinhas e rígidas, posando para o fotógrafo. Entretanto, elas não somente são destituídas de identidade, como se encontram duplamente apartadas. No lugar do rosto, trazem um cubo com o característico rosa, que lhes esconde a face e amortece a percepção; ao fundo, as aberturas das casas encontram-se cerradas e muitas vezes em degradação. Em sua economia formal e no aparente ludismo, Cidade sem Face escancara o isolamento humano diante de uma paisagem citadina também solitária e esquecida.

Se a vibrante cor fúcsia, nesses trabalhos, parece amainar o impacto das críticas de Venzon, nas obras mais recentes, que integram a mostra Babilônia, ela é inserida como um componente de saturação e, claro, de identificação do próprio artista.

Entre a realidade e o devaneio, Babilônia foi uma das grandes cidades da Antigüidade. Conta-se que, entre seus muros, para a população abastada, o prazer imperava sem limites. Daí talvez o motivo de ela ter sido, reiteradas vezes, amaldiçoada por profetas bíblicos, como se verifica no Antigo Testamento. Porto Alegre, como tantas cidades espalhadas pelo mundo, também tem a sua região “babilônica”. Trata-se da zona em torno da avenida Farrapos. Se de dia ela intimida os sentidos, com seus edifícios acinzentados e a excessiva fumaça dos carros, de noite ela os entorpece. Luzes, movimento, deleite e licenciosidade emanam das casas noturnas que fazem a fama do local. Foi próximo dali, no bairro Navegantes, que Venzon cresceu; foi convivendo desde cedo com a panfletagem, com a visão da prostituição e do néon que parte importante de sua sensibilidade se formou.

Babilônia é justamente carregada dessas reminiscências. Estabelecendo um fio condutor com a exposição Boates, apresentada no Margs em 2006, ela se caracteriza pela presença de espelhos, lâmpadas vermelhas, confetes, muita purpurina e cor, além, é claro, de centenas de estilhaços do cotidiano. Ali estão recortes de revistas e cartazes, imagens oriundas da indústria cultural, flores artificiais, tecidos estampados, vetustas fotografias, pequenos objetos de gesso e de plástico, placas de sinalização de ruas, fitinhas multicoloridas de Nossa Senhora dos Navegantes... Na orquestração desse hiperbólico universo kitsch, Venzon insere alusões à própria história da arte, bem como nomes de boates tradicionais e palavras ou frases que potencializam distintos significados, muito além daqueles rapidamente apreendidos. Nesse processo, uma vez mais o seu olhar atravessa o objeto em diferentes tempos; uma vez mais ele relaciona sujeito e lugar, fragmento e memória, artefato e fantasia, num discurso visual exuberante e contemporâneo. Como os lugares que referencia.


Março/2010.
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¹Paula Ramos é Crítica de arte, Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS/2007).

O afeto que não se encerra em Lia Menna Barreto

por Alexandre Antunes¹
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Lia Menna Barreto, 1998. Boneca com vida/ Sistema dependente/ Ecos da influência. Obra exibida em 2000, em exposição individual na galeria Camargo Vilaça - São Paulo.
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O que vem sendo apresentado ao longo de sua trajetória como artista é constituído pela apreensão das coisas no mundo, nas funções da casa, levando a filha na escola ou mesmo tratando dos animais domésticos, através de um percurso tão importante Lia Menna Barreto subverte a lógica da previsibilidade.
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Imagens que num primeiro momento desconsertam o espectador- alguns para sempre- sugerem através dos nomes para instalações ou trabalhos uma imersão em sua poética ao derreter objetos de borracha com ferro de passar roupa, o que antes era volume agora é plano, vários planos constituindo novas imagens numa ácida dialética, manipulando o avesso da matéria em ações como gestos de afeto lançados no universo.
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Diário de uma boneca: produção de uma boneca por dia durante um ano, Bonecas com plantas: cuidados e observação do tempo no desenvolvimento botânico, A Fábrica : produção contínua de tapetes com animais de borracha derretidos durante a Bienal do Mercosul, auxiliada por estudantes remunerados, Exercícios Afetivos: bonecas doadas por diversas pessoas a seu pedido gerando uma instalação no MARGS, dispondo numa das paredes os nomes dos colaboradores artistas e não artistas, Máquina de Bordar, Kit Afetivo, Ordem Noturna, Tapete de Sapos, Pintura de Taiwan, Casca de Boneca...

No seu processo de elaboração não há uma alquimia perversa ao utilizar-se de arquétipos reconhecidos, existe uma subjetiva delicadeza nesta complexa relação entre artista e espectador. Lia é uma artista que exercita estratégias ao ativar reflexões que se manifestam como intuições ordenando a matéria numa expansão de gestos aquecidos, sempre com atenção voltada para onde serão instalados seus trabalhos, sabendo obviamente que todo objeto é transfigurado em função do local específico, podendo ser lugares com visíveis marcas do tempo, ou espaços puros, brancos e assépticos. Possuo uma de suas cabeças de boneca-plantas, o que permite ter mais do que uma atitude passiva como espectador. Neste período mudei de moradia, cidade, estado, levando este objeto e observando as transformações naturais influenciadas pelos ambientes, adaptações climáticas, diferentes terras adubadas e descobertas de espécies. Ao olhar para a cabeça diariamente consigo identificar cada planta e seu exato momento de inclusão-plantio como natureza cognitiva, além de uma lembrança dos lugares que passei tratando-a não como vaso, mas algo pulsante para um tráfico constante de insetos e raízes entrando e saindo pela boca, olhos, orelhas e cabelo. Preocupo-me em não deixar que as plantas morram, mesmo sabendo caso isto ocorra, terei a condição de refazer o ecossistema numa operação botânica e estética configurando assim um sentido da arte como ética aplicada, tornando-me íntimo ao estabelecer esta cumplicidade num monólogo, indo além dos diálogos disparados por espectadores involuntários que normalmente reagem com estranhamento. Sua produção não pressupõe um método a seguir com regras deterministas. O estúdio funciona como local para organizar idéias alternando projeções de toda a natureza circundante ao meio ambiente, e o lugar para insights do artista continua sendo o mundo. Na casa que vive consigo fazer uma analogia com seu trabalho, onde pude acompanhar parte do processo de sua construção tomada hoje pela natureza com muitas espécies vegetais agregadas à arquitetura. O terreno que antes era árido tornou-se fértil. Constato que alguns artistas acabam sucumbindo nas próprias armadilhas formalizadas em suas trajetórias, não é o seu caso, pois como uma fênix ela trata de incinerar sua fantasmagoria reinventando seu fazer. O acaso se encerra na desmaterialização, mas o afeto nunca, valorizando a intuição no processo de qualquer artista, sendo mais do que uma elaboração construtiva para a matéria expandida. Lia desenvolve uma investigação profícua relacionada ao imaginário habitado da nossa infância, distinta de uma complexa abordagem para traumas infantis. Lembro de uma imagem-situação quando criança ao comer determinadas frutas, tinha a preocupação em não engolir as sementes acreditando que isto faria brotar uma árvore saindo seus galhos pelos orifícios do meu corpo. Ao investigar alguns campos do conhecimento, obtemos conceitos epistemológicos que nos possibilitam um cruzamento de linguagens através da inteligência sensível, aprofundando experiências ativadas por olhares menos apressados ou vícios característicos do senso comum, criando mecanismos para os sentidos como outros paradigmas avessos ao uso da razão. O caos da existência. O devir na experiência.



abril / 2010.
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¹ Alexandre Antunes - artista visual, nasceu e vive em Porto Alegre, cursou Filosofia no IFCH/UFRGS de 1995/1999, morou na Enseada das Garças/ES, Florianópolis/SC e Santiago do Chile, onde realizou uma exposição individual na galeria Bucci no período de 1996/1997. Participou de diversas exposições coletivas e realizou dez individuais. Atua como escritor, curador, editor, revisor com Edmilson Vasconcelos no web site: www.dobbra.com/terrenobaldio.htm

Alguns Comentários sobre a pintura de Julio Ghiorzi

por Paula Ramos¹
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"El Conejo". Pintura, acrílico sobre placa de celulose compactada e madeira138 x 138 cm. Julio Ghiorzi (1998). Prêmio Incentivo à Criatividade - XIII Salão de Artes Plásticas Câmara Municipal de Porto Alegre / XXIV SARP - Salão de Artes de Ribeirão Preto.



A experimentação e o estranhamento estão radicados na poética de Julio Ghiorzi. E isso vem de longa data. Fazendo um rápido passeio pela sua obra, percebemos claramente esse eixo. Se tomarmos as suas pinturas da década de 1990, com representações de cães, gatos, ratos e homens soturnos, todos envoltos na densa atmosfera da arte holandesa seiscentista, vestidos de preto e com suas vistosas golas brancas rendadas, temos, no mínimo, um conjunto figurativo fora do comum. Precisamos também reconhecer que as obras posteriores, em que Ghiorzi deslocou ícones da arquitetura moderna para paisagens renascentistas, com toda a sobriedade característica do período, eram igualmente insólitas. Com essas imagens, ao jogar com a temporalidade, ele nos incitou a articular complexas relações de forma e tempo, espaço e lugar. E o que dizer das pinturas gêmeas? Essas são ainda mais perturbadoras. Primeiramente, porque se trata de imagens espelhadas, derivadas de um processo híbrido entre gravura e pintura; e, depois, porque a tinta utilizada não é nada, absolutamente nada, convencional: esmalte sintético automotivo. Quando cores diferentes dessa mesma tinta entram em contato, elas reagem instantaneamente, com autonomia e intensidade sobre as quais o pintor não tem qualquer domínio. O resultado acaba sendo uma surpresa tanto para o espectador, quanto para o próprio artista.

É também por essa extravagante, porém coesa, trajetória, calcada na investigação matérica e na visita à própria história da pintura, que nem se fica assim, tão surpreendido (!), quando o artista diz que suas novas imagens surgiram a partir da descoloração do jeans com hipoclorito de sódio, a popular água sanitária... Sim, você leu certo: descoloração do jeans com água sanitária.

A idéia de trabalhar com jeans surgiu há cerca de três anos, quando Julio ainda vivia em Goiânia. Lá, aceitou a proposta de uma empresa fabricante do tecido, de usá-lo para algumas criações. Entretanto, a mera troca do suporte tradicional pelo de algodão índigo soou-lhe demasiadamente óbvia. Ele não via sentido em pintar sobre o jeans. Era necessário mais. Era necessário compreender a natureza do material para poder explorar as suas especificidades. E foi o que fez. As duas mais notáveis características do tecido como que lhe saltaram: (1) ele desbota; (2) ele facilmente absorve sujeira, a ponto de podermos dizer que a sujidade integra o seu repertório expressivo. Ou seja, de um lado há a perda de pigmentação e, de outro, o ganho. Compreendidas essas peculiaridades, pareceu-lhe evidente usar água sanitária para provocar o descoramento e, mais tarde, a terra para dar o caráter enodoado. A questão era como fazer isso.
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O Método
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A lógica desse processo não poderia ser a mesma lógica do ateliê. Primeiramente, a imagem pode levar dois a três dias para começar a surgir. Depois, para atingir o desbotamento total, são necessárias cerca de seis camadas do líquido, e elas devem ser aplicadas sempre sobre o tecido seco. Ghiorzi também percebeu que o seu reagente alcançava melhores e mais rápidos resultados quando exposto ao sol. Assim, viu-se convidado a abandonar o ateliê e a encarar o espaço externo; traduzindo: a luminosidade, o ar seco e o calor estarrecedor de Goiânia. E ao seu kit de trabalho, além dos pincéis e sprays, foram incorporados garrafa com água, filtro solar, óculos de sol, boné...

Durante a feitura das imagens há, naturalmente, um novo raciocínio, uma vez que Julio não está trabalhando com adição de pigmentos, com tintas sobrepostas no suporte e que criam manchas na tela. Seu processo é inverso, é de eliminação. Onde ele aplica o hipoclorito de sódio há perda de pigmentos e conseqüente ganho de luz. Nesse sentido, assim como o que já havia acontecido com as pinturas gêmeas, seu procedimento é um híbrido entre a gravura e a pintura. Há também um parentesco com a aquarela, uma vez que não se pode voltar: uma pincelada de água sanitária significa tons mais esmaecidos. A pintura possibilita a volta, mas esse processo, não. Todos esses fatores obrigaram Julio a se reorganizar, a pensar visualmente de uma outra forma.

Por fim, a inserção do elemento terra, que não é tratado como um simples pigmento, mas como um colorante, no sentido do material usado para tingidura do jeans. Nessa etapa, o artista prepara uma solução composta de água, terra e emulsão acrílica, na qual mergulha os tecidos. Esses depois são escovados no chão e pendurados no varal, como uma velha calça jeans. Nova cartilha de pintura.
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Os Temas
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Mantendo a sua tradição figurativa, Ghiorzi revisita alguns dos grandes gêneros e pinturas da História da Arte. Ali estão citações de As Meninas, de Velázquez, A Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, A Paisagem de Delft, de Vermeer. Estão também representações ou retratos, como o de Andy Warhol, do Buda e do Frankenstein imortalizado no cinema por Boris Karloff no filme homônimo de 1931. Há, ainda, uma natureza morta com frutas, que funciona como um inusitado índice de Carmem Miranda.

Esses motivos têm um tom pop e, naturalmente, de reverência. Quase todos, inclusive, são conhecidos pelo grande público e proporcionam uma imediata empatia. Ghiorzi admite que, embora tenha um especial carinho pelos temas tratados, adotou-os muito mais por eles serem de rápida identificação. O seu interesse não era discorrer sobre eles, mas sim propor um debate acerca do discurso da pintura que passa pela técnica. E as suas imagens permitem isso, uma vez que são fruto de um procedimento mestiço cujo resultado é pictórico. Tal reflexão está, portanto, incorporada ao processo e à obra acabada. É nesse âmbito que reside a potência maior de sua poética.

A pesquisa visual a que vem se dedicando Julio Ghiorzi guarda, inegavelmente, preciosas coerências. De suas pinturas podemos esperar sempre um denso rigor técnico, um refinado exame de materiais e uma sedutora singularidade, qualidades que vêm abrindo caminho para distintas e inusitadas investigações.



Julho/2006._________________________________________________________
¹Paula Ramos é Crítica de arte, Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS/2007).


A Contundência de Angelo Venosa

por Régis Bonvicino¹



Angelo Venosa, nascido em São Paulo em 1954, com estreia em 1983, é um dos mais contundentes artistas brasileiros vivos. Aliás, escolheu a vertente mais difícil das artes plásticas: a escultura. Por isso, é de se saudar o lançamento do livro Angelo Venosa², que reúne parte significativa de sua obra e também pequena fortuna crítica sobre ela, de lavra dos melhores ensaístas da área no Brasil, como Rodrigo Naves. Meu olhar sobre Angelo Venosa é o de um poeta e o de um amador, na acepção amorosa da palavra, e não o de um especialista como Naves.
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O escritor catalão Juan Goytisolo (1931), autoexilado em Marrakesh, Marrocos, desde algum momento da ditadura do general Francisco Franco, que submeteu a Espanha de 1936 a 1975, afirmou, em recente entrevista ao jornal espanhol El País, que a literatura pertence ao domínio do raro e que aquele que não pretende inovar, mesmo sob a pena de ser incompreendido, não deveria escrever. A produção de Venosa inscreve-se no campo do raro e do inovador. Embora varie, relativamente, temas e materiais, a parte mais perturbadora de sua criação é aquela que lida com dentes, caveiras, carcaças, vértebras, máscaras mortuárias e esqueletos humanos e de animais.

A pesquisadora e crítica literária Flora Sussekind descreve, num dos textos do volume, o processo criativo de Angelo como a projeção do tempo morto das coisas imóveis (o “tempo” do esqueleto) num processo narrativo de temporalização, ou seja, de reavivamento, adiciono, extremamente crítico. O trabalho desse escultor impõe-se como relevante se considerarmos que a arte, sob um ponto de vista teórico mais rigoroso, simplesmente morreu, ou que, numa perspectiva estética, se transformou em concepção mera e mecanicamente produtiva, desprovida de invenção. É um produto a mais, degradado, subjugado. Como lembra o poeta uruguaio Eduardo Milán, não há diferença literária ou mercadológica entre um livro de Paulo Coelho ou um de José Saramago e, talvez, o leitor de hoje nem sequer os saiba distinguir, quando os lê.

A queda da razão utópica, que apenas coincidiu com a queda do Muro de Berlim em 1989, e a subseqüente desorganização do mundo não deixaram nada impune. O presente capitalista selvagem tornou-se infinito para todas as esferas da arte. A poesia ou a prosa que se faz hoje no Brasil – com exceções – é, cada vez mais, ato mecânico, superficial, destituído de duende – arte para prêmio Jabuti. As artes plásticas não fogem a essa regra.

Por isso surge abrupto e violento o trabalho de Venosa, que dialoga, em alguns momentos, com as anamorfoses de Regina Silveira no Brasil, embora não seja maneirista, e, remotamente, com os aspectos formais da arte Merz (corruptela de comércio e de merda igualmente para as línguas latinas) do dadaísta alemão Kurt Schwitters (1887-1948). Schwitters criava, apropriando-se do lixo industrial (selos, sucata etc.), fazendo colagens de detritos ou compondo seus óleos sobre tela com objetos da indústria, como rodas superpostas em cores diversas; Venosa trabalha com o homem e a vida transformados em lixo e não mais só os objetos.
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---------Angelo Venosa. Sem Título, 1989. Madeira e fiberglass, 240 x 135 x 20 cm.---------------------------------------------------------------------
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É lancinante, por exemplo, sua escultura Sem título, de 1994, identificada como “ossatura de boi”, na qual as caveiras de cabeças bovinas tentam – em narrativa amorosa – abraçar-se e beijar-se. Ressaltam-se as garras negras que, apesar de estarem em esboço de ato amoroso, mostram-se necrosadas. Reanimadas como arte, apontam para a morte do mundo vivo, mundo do capitalista selvagem infinito. Nessa escultura, Venosa retribui a violência! Há precisão e fragilidade na peça, como poderia dizer Luiz Camillo Osorio, prefaciador do livro. De passagem, registro que discordo da preocupação excessiva de Osorio em catalogar a arte em décadas – uma questão recorrente mais à crítica carioca de uma Heloísa Buarque de Hollanda ou de uma inconsistente Beatriz Resende. Tal divisão é mercadológica e depõe contra o seu excelente texto, em que o trabalho de Venosa é definido – com coragem – como desafeito à transparência e à comunicação, isto é, ao mercado, e também como um trabalho antirretórico, que se faz com as “sobras e sombras do projeto moderno”.

Osorio fala de um desencanto de Venosa, tratando de sua “formação moderna desencantada”. Prefiro falar dele como o artista do “memento mori” – expressão latina que quer dizer “lembra-te que o homem vai morrer um dia”. Suas esculturas revelam, ao mesmo tempo, que a arte e os aspectos humanistas da civilização estão mortos, paradoxalmente por meio de arte de alta qualidade, o que denuncia nele um princípio mínimo de esperança. Se Venosa fosse poeta, seria descendente do pré-modernista Augusto dos Anjos (1884-1914). Transcrevo o poema “Decadência” desse poeta paraibano que – estranhamente – descreve (em muitos ângulos) o trabalho de Venosa mais de um século depois:

“Decadência”


Iguais às linhas perpendiculares
Caíram, como crueis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares


A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetra-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!


Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,
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Ele vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
E a armação funerária das clavículas!



Ou, como observa o crítico de artes plásticas e poeta Ronaldo Brito: “Embora partindo a interioridade, as esculturas de Venosa terminam sintomaticamente ocas. A interioridade é apenas uma armação em torno de certo vazio”. Não é necessário desejar longa vida à obra de Venosa e suas formas vivas indefiníveis, como as define Osorio com exatidão.




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1 RÉGIS BONVICINO nasceu na cidade de São Paulo, em 1955. Formou-se em Direito pela USP, em 1978. Trabalhou como articulista do jornal Folha de S. Paulo e de outros veículos até ingressar na magistratura, em 1990. Seus três primeiros livros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) e Sósia da cópia (1983) foram por ele mesmo editados. Hoje, estão reunidos no volume Primeiro tempo (Perspectiva, 1995).Entre suas participações em leituras de poesia destacam-se as atuações em Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhague (1993); na III Bienal Internacional de Poetas em Val-de-Marne (1995), fazendo leituras em Paris (Maison de La Amerique Latine) e Marselha (Centro Internacional de Poesia); Berkeley (1996), com Michael Palmer, e na San Francisco State Universty. Em 1998, apresentou-se com Charles Bernstein no Segue Performance Foundation, de Nova York; no ano de 1999 esteve em Santiago de Compostela, na Universidade de Santiago. Fez leituras em Iowa City (2000), com Michael Palmer, e em Chicago; participou do IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Destaca-se ainda sua participação na Feira do Livro da Cidade do México (2004). Seu trabalho está traduzido para o inglês, espanhol, francês, chinês, catalão, finlandês e dinamarquês. Entre 1975 e 1983, dirigiu as revistas de poesia Qorpo Estranho – com três números –, Poesia em Greve e Muda. Fundou, em 2001, e co-dirige, ao lado de Charles Bernstein, a revista Sibila (http://www.sibila.com.br), publicada atualmente pela Martins Editora.


2 Angelo Venosa. São Paulo: Cosacnaify. 264 páginas.




ROUE DE BICYCLETTE: UN MONUMENTO DE LA MODERNIDAD O EL NACIMIENTO DEL ARTE CONCEPTUAL

*Sergio Gonzalez Valenzuela

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Marcel Duchamp. Roda de Bicicleta, 1913. Ready-made, madeira e metal.



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“El objeto es una metáfora, una representación de Duchamp: su reflexión sobre el objeto es también una meditación sobre sí mismo”.
-Octavio Paz-


Como ya ha sido señalado una de las búsquedas más trascendentes de la “modernidad” ha sido la que Compagnon denomina: “El prestigio de lo nuevo”. De modo que los movimientos artísticos de final del siglo XIX, y el posterior surgimiento de las vanguardias se relacionan con una cierta superación y rechazo de lo antiguo, lo clásico. Por otro lado, esta modernidad se plantea tanto como una reivindicación del momento actual –dentro de un largo proceso artístico-cultural-, o bien, como “la posibilidad de una estética de lo nuevo” (1), vinculando la producción de arte con el desarrollo de la técnica y el progreso industrial. De este modo, dicha producción artística se verá irremediablemente vinculada a lo perecible y/o desechable que surge con la noción de ‘moda’, salvo que en un giro contradictorio opte por ser “digna de convertirse en antigüedad...” (2), es decir, en volverse clásica, en trascender su momento, y de esta forma traicionar toda su supuesta “modernidad”. De este modo, la invención de la fotografía y las amplias posibilidades de 'reproducción técnicas o mecánicas', le permitieron al arte del siglo XIX una lenta pero progresiva emancipación de la función mimética, para llevarla finalmente a un camino de autonomía y reflexión tan revolucionarias como lo fue la aparición de las vanguardias a principios del siglo XX.


2
"Lo bello es siempre extraño".
-Charles Baudelaire -



Es dentro de este espíritu que podemos entender los cuatro rasgos de la modernidad en la pintura señalados por Baudelaire: lo no determinado; lo fragmentario; la insignificancia o la pérdida de sentido; y, la autonomía. Los cuales se refieren a la ruptura de la tradición pictórica en todos sus aspectos. En primer lugar lo ‘no determinado’ se relaciona con el distanciamiento de la representación mimética de la realidad; lo ‘fragmentario’ alude a la importancia que se le atribuye al detalle (el primer plano) por sobre la visión de conjunto; la ‘insignificancia’ se refiere a la pérdida del tema, es decir la no literalidad de la pintura; y, la ‘autonomía’ se refiere a la desvinculación con la tradición, por tanto, la pintura se vuelve autocrítica y auto-referente. Todo lo cual determinaría algunos de los aspectos característicos de la "modernidad" en el arte.

En medio de este panorama es donde instalamos la figura de Duchamp, y específicamente su primer ‘ready-made’ (3). “Roue de bicyclette” fue ensamblada por Duchamp en el año de 1913 [aquí nos enfrentamos a la primera paradoja. El “original” se perdió, los que conocemos son “copias” realizadas y/o autorizadas por el propio Duchamp (en 1916 y en 1951), lo que afirma que: “La obra de arte ha sido siempre fundamentalmente susceptible de reproducción” (4). Esto pone de manifiesto dos nuevos problemas: la obra de arte entendida como “original”, y las posibilidades de reproducir dichas obras. En el primer caso nos situamos en el ámbito de la experiencia aurática; en el segundo, observamos lo contrario: la destrucción del aura (5), donde la excelencia de la reproducción se ve afectada por el estigma de la copia: “...incluso en la reproducción mejor acabada falta algo: el aquí y el ahora de la obra de arte, su existencia irrepetible...” (6)]. Este objeto es el resultado de un ‘ensamblaje’ [lo que lo sitúa en la sub-categoría de ready-made rectificado] (7), entre una rueda de bicicleta (sin cámara ni neumático) y un taburete de madera.

En este caso observamos dos aspectos fundamentales: por un lado la elección azarosa y neutra de un objeto (lo que sin embargo, no dejaría de incluir algún tipo de voluntad artística iconoclasta, ya que en este caso nos enfrentamos a una ‘construcción’ escultórica tectónica y cinética, después volveré sobre este punto), y por otro, el hecho de firmar una obra, en este caso un objeto cotidiano [en este caso un útil –la rueda de bicicleta-, que ha sido rescatado de su condición de desperdicio, puesto que por si sola no sirve para nada, salvo para instalarla (8) sobre un taburete de madera-, y de este forma atribuirle un aura y una certificación de ‘originalidad’ y de ‘autoría’]. “Buscar piedras diferentes o iguales no son actos distintos: ambos afirman que la naturaleza es creadora. Escoger una piedra entre mil equivale a darle nombre [...] Por eso el arte, según Aristóteles, es imitación: el poeta imita el gesto creador de la naturaleza. El chino lleva hasta su última consecuencia esta idea: escoge una piedra y la firma inscribe su nombre en una creación y su firma es un reconocimiento; Duchamp escoge un objeto manufacturado: inscribe su nombre en una negación y su gesto es un desafío” (9). Gesto que deviene negación del artista, que no ‘produce’, sino más bien, recoge y ‘escoge’.

Desafío en cuanto a que su firma (le otorga un aura, que como objeto industrial seriado no poseería, salvo el de marca y número de serie) y su elección elevan un objeto común a la categoría de obra de arte (10), por tanto, digna de ubicarse en un museo y de ser contemplada.



3
"Il 'ready-made' dunque è lì, davanti a noi. Non evoca niente. Insiste, persiste ad essere semplicentemente lì. Significa solo se stesso, rimanda soltanto alla propria 'insignificante' precenza".
-Massimo Carboni-


Cuando pensamos en la muerte del arte augurada por Hegel (11), debemos pensar concretamente en la muerte del mercado del arte, de la obra de arte concebida como objeto artístico sometido a un valor de cambio. Este es desplazamiento del valor cultual de la obra de arte por el de valor exhibitivo referido por Benjamin (donde se establece una relación incierta entre el valor de uso y el valor de cambio, ya que se puede pasar del fetiche a la mercancía en forma muy arbitraria). En este caso el gesto de Duchamp se convierte en una dislocación del sentido de obra-mercado, o mas bien, el 'sin sentido' (o el "satori" zen) como la única posibilidad de redimir el quehacer artístico. Dentro de este aspecto es que debemos considerar que los ready-mades no fueron concebidos como objetos de arte y menos como productos para ser expuestos en un museo (a excepción del caso de la presentación al Salón de los Independientes del urinario "Fontaine"), lo que se relaciona con la “l’estetzació generalitzada, capaç de museïtzar qualsevol cosa. ‘¿És possible encara fabricar alguna cosa que no sigui art?’, es preguntava Marcel Duchamp, en posar en circulació els ‘ready-made’” (12). Lo que se transforma en una actividad de fetichización que se relaciona con acumular, amontonar y preservar para luchar contra el tiempo que es capaz de producir la desaparición del objeto convertido por la industria en objeto de utilidad o de placer, por eso el museo se transmuta en “una cripta, una xarxa de criptes: un mausoleu” (13). Aquí se presenta la paradoja del objeto como fetiche o como posesión comercial, situándose entre lo sagrado y lo profano que cada una de estas actitudes supone (14).



4
“Un punto que quiero dejar muy claro es que la elección de estos ‘ready-mades’ nunca estuvo dictada por una delectación estética. La elección se basaba en una reacción de ‘indiferencia’ plástica, acompañada, al mismo tiempo, de una ausencia total de buen o mal gusto, de hecho una anestesia completa”.
-Marcel Duchamp-


En este panorama surge la voluntad artística de Duchamp de elegir objetos y “auratizarlos”. El ready-made nunca tuvo la pretensión de instalarse en el ámbito de las galerías de arte, ya que al ser productos antiartísticos y anestéticos (15) trascendían la noción de objeto museográfico, de allí que muchos de ellos se hayan perdido sin significar una pérdida de obras únicas e irrepetibles, ya que sabemos que Duchamp realizó o autorizó nuevas versiones de los mismos. Sin embargo, lo más radical del gesto consiste en que el ready-made se presenta como una crítica hacia el mercado del arte, hacia la burguesía (16). No es de extrañarse de que esto implicara un antecedente reconocido por los dadaístas, dentro de lo que se llamó la 'estética del shock' (Benjamin). Por eso el ready-made no es un objeto valioso, ni hermoso, ni útil. Al contrario, es parte de lo que Duchamp denomina la 'belleza de indeferencia', es una trasgresión del gusto, es otorgar una contemplación estética a un objeto "familiarmente estraneo, enigmaticamente ovvio" (17), lo que Paz explica del siguiente modo: "Ahora todos esos objetos, arrancados de su contexto histórico, su función específica y su significación original, se ofrecen a nuestros ojos como divinidades enigmáticas y nos exigen adoración" (18). Un regreso a la teoría de Benjamin. Lo que la vanguardia consiguió a través del descrédito de la obra de arte fue la exaltación del gesto artístico (de aquí al arte conceptual hay solo un paso). Ya que cada ready-made se convirtió en icono, producto de la transmutación del objeto y de la secularización del arte donde "los museos son nuestros templos y los objetos que se exhiben en ellos están más allá de la historia" (19). En este sentido es como los objetos se vuelven ídolos, para luego convertirse en ideas, donde pasan a ser realidades autónomas, autosuficientes y con una finalidad en sí mismos.

Así, de la negación del sentido por el objeto a la negación del objeto por el sentido. Aporía de aporías. Estética negativa, arte combativo y desesperanzado, donde los cambios exigen la novedad, la distinción que es el emblema de la moda. Sin embargo, el ready-made se inmortaliza al ser bello por designación, al ser auratizado por la firma (certificado de autenticidad y unicidad) y por el disegno. Eternidad asegurada en el museo por la conservación a diferencia del objeto industrial que al volverse inútil termina en el basurero.


5
"Arte es lo que el artista llama arte".
-Marcel Duchamp-

La escultura supone dos procedimientos: sustractivos o de desbaste y aditivos, los que pueden dividirse en estereotómicos y tectónicos, es decir, moldeables y construibles. A partir de esta diferenciación puedo afirmar -siguiendo la tesis de Rosalind Krauss-, que "Roue de Bicyclette" si es una escultura, ya que como ya señalé es un ensamblaje -por tanto tectónico-, tridimensional y a la vez móvil (20). Por lo que esta 'obra' no sólo marca un hito dentro de la escultura de la modernidad, sino que además realiza realmente los conceptos de movimiento y espacialidad (en este aspecto hay una relación más directa con el trabajo de Tinguely que con la obra de Calder). En este sentido es claro que existe una voluntad de espectador activo por parte de Duchamp (ya que sólo este puede poner en movimiento -circular masturbatorio según algunas interpretaciones- la rueda de bicicleta), como también de su inserción espacial, es lo que Barnett Newman llama "aquello con lo que tropiezas cuando retrocedes para mirar un cuadro" (21). Pero no solamente es este estorbo, sino que a través "de la representación de sus propios materiales o el proceso de su construcción, la escultura muestra su propia autonomía" (22), es la posibilidad de experimentar la espacialidad exenta a los muros y a la bidimensionalidad de la pintura. Si a eso agregamos el aspecto 'móvil' de este ready-made, sí que nos enfrentamos a un hito artístico. Si además consideramos la condición negativa de la escultura en relación al monumento (23), podemos pensar de que “Roue de Bicyclette" puede ser pensada como un monumento de la crisis de la modernidad y de la cisión del arte de las vanguardias, a la vez que "se nos presenta como un eslabón imprescindible en la cadena evolutiva de la historia del arte" (24), ya que si pensamos en las dicotomías planteadas por Compagnon respecto a las vanguardias, Duchamp es el héroe 'per se' de la vertiente 'destructiva, negativa y nihilista' representada por el movimiento Dadá. Lo que expresado por el propio Duchamp se traduce en su metaironía, en belleza de indiferencia, signo de la concordancia y ... (*Sergio González Valenzuela, Mayo 1997).
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NOTAS

1.- Compagnon, en “Las cinco paradojas de la modernidad”. Monte Ávila Editores, Caracas, 1993.
2.- Compagnon, op. cit.
3.- Definición de Ready-made: “objects manufacturés promus à la dignité d’objects par le choix de l’artiste”. Marcel Duchamp en “Dictionnaire abrégé du Surréalisme”, José Corti, Rennes, 1969.
4.- Walter Benjamin: “La obra de arte en su período de reproductibilidad técnica”. En Discursos Interrumpidos I, Taurus, Madrid, 1989.
5.- Definición de Aura: “definiremos esta última como la manifestación irrepetible de una lejanía (por cercana que pueda estar)”. Walter Benjamin en “La obra de arte en su período de reproductibilidad técnica”. Op. cit.
6.- Walter Benjamin: “La obra de arte en su período de reproductibilidad técnica”. Op. cit. Los ready-made pueden ser clasificados como ready-made (pariente del objet trouvé surrealista), ready-made ayudado, ready-made recíproco, ready-made rectificado, etcétera. O bien refiriéndose a su materialidad: objeto ensamblado, objeto firmados, objetos construidos, objetos lúdicos, etcétera. J.A. Ramírez propone una clasificación de acuerdo al grado de rectificación y complejidad del ensamblaje, y una segunda en relación al grado de exigencia de manipulación de los ready-mades, siendo estos: para mirar, de manipulación recomendable y de manipulación obligatoria.
7.- Definición de Assemblage: "Cette façon de construire établit un rapport entre materiaux de caractéres differents, et permets à l'artiste faire des œuvres avec une grande complexité structurale, ou l'on voit la difference entre des élements tels comme du bois, de la peinture, du matèriel graphique et des informations de procedence diverse", en Catalogue "Répétion générale" Fonds Regional d'Art Contemporain - Rhône-Alpes / Frac, Museo de Arte Contemporáneo, 1995. En este caso hay que mencionar que esta 'intervención' supone una diferenciación con el objeto en "estado natural", lo que de alguna forma lo aleja de la noción surrealista del "objet trouvé", que es definitivamente mucho más estético y poseedor de un contenido manifiesto o latente, muchas veces bastante evidente. “De ahí la necesidad de «rectificar» al ‘ready-made’: la inyección de ironía lo ayuda a preservar su anonimato y su neutralidad”, O.Paz, Op. cit.
8.- “... el útil está subordinado al hombre que le emplea, que puede modificarlo a su gusto, con vistas a un resultado determinado”, Georges Bataille en “Teoría de la religión”, Taurus, Madrid, 1975.
9.- Octavio Paz en “Apariencia Desnuda – La obra de Marcel Duchamp”. Era, México D.F., 1985.
10.- “Los ‘ready-made’ son objetos anónimos que el gesto gratuito del artista, por el solo hecho de escogerlos, convierte en obras de arte. Al mismo tiempo, ese gesto disuelve la noción de «objeto de arte». La contradicción es la esencia del acto; es el equivalente plástico del juego de palabras: éste destruye el significado, aquél la idea de valor. Los ‘ready-mades’ no son anti-arte, como tantas creaciones modernas, sino ‘a-rtísticos’. Ni arte ni anti-arte sino algo que está entre ambos, indiferente en una zona vacía”. Octavio Paz, op. Cit.
11.- “Cuando por el arte o por el pensamiento un objeto se vuelve de tal modo accesible a la percepción sensible que su contenido se encuentra por así decirlo agotado, cuando todo se vuelve exterior y no queda nada oscuro no interior, el interés absoluto por ese objeto desaparece”. G.F.W. Hegel en “Leçon d’Esthétique”, Ed. Aubier, 1944. Citado por Guido Morpurgo-Tagliobue en “La estética contemporánea”, Losada, Buenos Aires, 1971.
12.- Pilar Parcerisas en “El museu i els seus fetitxes”. Diari Avui – Suplement Cultura, 1997. www.avui.es/avui/hist/textes.html
13.- Pilar Parcerisas. Op. Cit.
14.- “... lo que es sagrado atrae y posee un valor incomparable, pero en el mismo momento eso aparece vertiginosamente peligroso para este mundo claro y profano donde la humanidad sitúa su dominio privilegiado”. Georges Bataille, Op. Cit.
15.- “En el caso de los ‘ready-made’ la relación no es de fusión sino de oposición: son objetos hechos contra el público, contra nosotros. De una y otra manera Duchamp afirma que la obra no es una pieza de museo; no es un objeto de adoración ni de uso sino de invención y creación [...] Una vez más Apollinaire dio en el blanco: Duchamp intenta reconciliar arte y vida, obra y espectador. Pero la experiencia de otras épocas es irrepetible y Duchamp lo sabe. Arte fundido a la vida es arte socializado, no arte social ni socialista y aún menos actividad dedicada a la producción de objetos hermosos o simplemente decorativos. Arte fundido a la vida quiere decir poema de Mallarmé o novela de Joyce: el arte más difícil. Un arte que ‘obliga’ al espectador y al lector a convertirse en un artista y en un poeta”, O.Paz, Op. cit.
16.- “El ‘ready-made’ no postula un valor nuevo: es un dardo contra lo que llamamos valioso. Es crítica activa: un puntapié contra la obra de arte sentada en su pedestal de adjetivos. La acción crítica se despliega en dos momentos. El primero es de orden higiénico, un aseo intelectual, el ‘ready-made’ es una crítica del gusto; el segundo es un ataque a la noción de obra de arte”, O.Paz, Op. cit.
17.- Massimo Carboni en "Il Sublime è ora". Castelvecchi, Roma, 1993.
18.- O.Paz en “El uso y la contemplación”. En “In/mediaciones”. Seix Barral, Barcelona, 1986.
19.- O.Paz en “El uso y la contemplación”. En “In/mediaciones”. Seix Barral, Barcelona, 1986.
20.- "El primer ready-made (1913) es, de hecho, el ensamblaje de una rueda delantera de bicicleta y de un taburete. La horquilla está pintada de negro y el taburete de blanco. El giro simultáneo de la rueda y de la horquilla producen una esfera", J.A. Ramírez citando una nota del Museo de Arte de Filadelfia, en “Duchamp: el amor y la muerte, incluso”. Siruela, Madrid, 1993.
21.- Citado por Rosalind Krauss en “La escultura en el campo expandido”. En “La posmodernidad”. Kairós, 1986.
22.- R. Krauss, Op. Cit.

23.- "Por monumento, en el sentido más antiguo y primigenio, se entiende una obra realizada por la mano humana y creada con el fin específico de mantener hazañas o destinos individuales (o un conjunto de estos) siempre vivos y presentes en la conciencia de las generaciones venideras", Aloïs Riegl en “El culto moderno a los monumentos”. Visor, Madrid, 1987.
24.- A. Riegl, Op. Cit.


BIBLIOGRAFÍA CONSULTADA


1.- Compagnon, A. “Las cinco paradojas de la modernidad”. Monte Ávila Editores, Caracas, 1993.
2.- Krauss, R. “La escultura en el campo expandido”. En “La posmodernidad”. Kairós, 1986.
3.- Ramírez, J.A. “Duchamp: el amor y la muerte, incluso”. Siruela, Madrid, 1993.
4.- Paz, O. “El uso y la contemplación”. En “In/mediaciones”. Seix Barral, Barcelona, 1986.
5.- Clair, J. “L’œuvre de Marcel Duchamp (Catalogue)”. Centre National d’Art et de Culture Georges Pompidou, Paris, 1977.
6.- Schwarz, A. “Marcel Duchamp: La mariée mise a nu chez Marcel Duchamp, même”. Editions Georges Fall, Paris,1974.
7.- Riegl, A. “El culto moderno a los monumentos”. Visor, Madrid, 1987.
8.- Paz, O. “Apariencia Desnuda – La obra de Marcel Duchamp”. Era, México D.F., 1985.
9.- Carboni, M. "Il Sublime è ora". Castelvecchi, Roma, 1993.
10.- Benjamin, W. “Discursos Interrumpidos I”, Taurus, Madrid, 1989.
11.- Parcerisas, P. “El museu i els seus fetitxes”. Diari Avui – Suplement Cultura, 1997. www.avui.es/avui/hist/textes.html
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*Sergio Gonzalez Valenzuela. Profesor de la Universidad Finis Terrae (Santiago de Chile). Licenciado en Teoría e Historia del Arte de la Universidad de Chile gracias a una tesis sobre Marcel Duchamp. Trabajó como Curador Asistente en el MAC de Santiago de Chile y en el MNCARS de Madrid. Actualmente es curador independiente y co-curador de la exposición "Joan Brossa, desde Barcelona al Nuevo Mundo". Administrador de los blogs: La Poesia en el Campo Expandido y La Cosa Stessa- Arte & Cultura