André Venzon. "Boate", 2006.
A obra de André Venzon é articulada, preponderantemente, a partir de fragmentos. Extratos de imagens, objetos, palavras e lugares constituem a matéria-prima do artista. Nesses fragmentos lateja a memória; por meio deles a fantasia é alimentada. Venzon sabe disso e explora, em suas obras, essa capacidade de investimento psicológico dos signos, apostando no reconhecimento, na rememoração e no imaginário dos espectadores.
Observador atento às pulsações do urbano, o artista trafega pela cidade reconhecendo as identidades regionais, os aspectos que distinguem determinados espaços, que acionam o dispositivo da lembrança. Desde o início de sua trajetória artística, há pouco mais de dez anos, tem buscado estabelecer pontes formais e conceituais entre o lugar e o sujeito, entre aquele que vivencia e aquilo que o envolve, alinhavando múltiplas temporalidades. Diversas vezes, opera no sentido de tornar novamente visível algo que já não mais existe. É o caso do monumento ao centenário da imigração israelita para o Brasil, localizado junto ao Parque Farroupilha, em Porto Alegre. Neste trabalho, executado em 2004, Venzon reproduz em concreto e quartzito rosa um detalhe da fachada do antigo cinema Baltimore. Durante décadas o pequeno complexo de salas de exibição funcionou na avenida Oswaldo Aranha, no bairro Bom Fim, um dos eixos da comunidade judaica na capital sul-rio-grandense. Hoje o Baltimore não existe mais; antes dele, no mesmo lugar, foi erguida a primeira escola semita de Porto Alegre; atualmente, a área é ocupada por um estacionamento. Nesse anacronismo de forte carga simbólica, o memorial erigido a partir do fragmento pode nos reportar tanto a possíveis momentos vividos naquele ambiente, como à fragilidade de nossas políticas de preservação.
A consciência histórica e a crítica às relações de poder percebidas nos espaços urbanos despontam em vários trabalhos de Venzon que, na década de 1990, chegou a estudar Arquitetura e Urbanismo, embora sem concluir. Na série Fechamento, por exemplo, realizada entre 2003 e 2006, ele fotografou avenidas, prédios, conjuntos habitacionais que haviam sido segregados do olhar do transeunte por meio de madeirites. Madeirite é a denominação usual empregada para indicar um tipo de compensado precário, tradicionalmente adotado na construção civil, sobretudo para isolar as áreas que estão sendo edificadas. Com o objetivo de chamar a atenção do público, o madeirite é quase sempre pintado de fúcsia, um rosa forte, próximo ao magenta. Venzon incorporou esses elementos de tal forma à sua poética, que hoje constituem uma verdadeira “marca registrada” do artista. Eles estão nos já citados Fechamentos, em instalações e obras in situ apresentadas em várias cidades do país, e na pungente série Cidade sem Face (2005), realizada em parceria com Igor Sperotto. Nessa última, Venzon fotografou pessoas junto a calçadas, diante de casas quase sempre com janelas e portas fechadas. Todas aparecem de corpo inteiro, sozinhas e rígidas, posando para o fotógrafo. Entretanto, elas não somente são destituídas de identidade, como se encontram duplamente apartadas. No lugar do rosto, trazem um cubo com o característico rosa, que lhes esconde a face e amortece a percepção; ao fundo, as aberturas das casas encontram-se cerradas e muitas vezes em degradação. Em sua economia formal e no aparente ludismo, Cidade sem Face escancara o isolamento humano diante de uma paisagem citadina também solitária e esquecida.
Se a vibrante cor fúcsia, nesses trabalhos, parece amainar o impacto das críticas de Venzon, nas obras mais recentes, que integram a mostra Babilônia, ela é inserida como um componente de saturação e, claro, de identificação do próprio artista.
Entre a realidade e o devaneio, Babilônia foi uma das grandes cidades da Antigüidade. Conta-se que, entre seus muros, para a população abastada, o prazer imperava sem limites. Daí talvez o motivo de ela ter sido, reiteradas vezes, amaldiçoada por profetas bíblicos, como se verifica no Antigo Testamento. Porto Alegre, como tantas cidades espalhadas pelo mundo, também tem a sua região “babilônica”. Trata-se da zona em torno da avenida Farrapos. Se de dia ela intimida os sentidos, com seus edifícios acinzentados e a excessiva fumaça dos carros, de noite ela os entorpece. Luzes, movimento, deleite e licenciosidade emanam das casas noturnas que fazem a fama do local. Foi próximo dali, no bairro Navegantes, que Venzon cresceu; foi convivendo desde cedo com a panfletagem, com a visão da prostituição e do néon que parte importante de sua sensibilidade se formou.
Babilônia é justamente carregada dessas reminiscências. Estabelecendo um fio condutor com a exposição Boates, apresentada no Margs em 2006, ela se caracteriza pela presença de espelhos, lâmpadas vermelhas, confetes, muita purpurina e cor, além, é claro, de centenas de estilhaços do cotidiano. Ali estão recortes de revistas e cartazes, imagens oriundas da indústria cultural, flores artificiais, tecidos estampados, vetustas fotografias, pequenos objetos de gesso e de plástico, placas de sinalização de ruas, fitinhas multicoloridas de Nossa Senhora dos Navegantes... Na orquestração desse hiperbólico universo kitsch, Venzon insere alusões à própria história da arte, bem como nomes de boates tradicionais e palavras ou frases que potencializam distintos significados, muito além daqueles rapidamente apreendidos. Nesse processo, uma vez mais o seu olhar atravessa o objeto em diferentes tempos; uma vez mais ele relaciona sujeito e lugar, fragmento e memória, artefato e fantasia, num discurso visual exuberante e contemporâneo. Como os lugares que referencia.
Março/2010.
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¹Paula Ramos é Crítica de arte, Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS/2007).
A obra de André Venzon é articulada, preponderantemente, a partir de fragmentos. Extratos de imagens, objetos, palavras e lugares constituem a matéria-prima do artista. Nesses fragmentos lateja a memória; por meio deles a fantasia é alimentada. Venzon sabe disso e explora, em suas obras, essa capacidade de investimento psicológico dos signos, apostando no reconhecimento, na rememoração e no imaginário dos espectadores.
Observador atento às pulsações do urbano, o artista trafega pela cidade reconhecendo as identidades regionais, os aspectos que distinguem determinados espaços, que acionam o dispositivo da lembrança. Desde o início de sua trajetória artística, há pouco mais de dez anos, tem buscado estabelecer pontes formais e conceituais entre o lugar e o sujeito, entre aquele que vivencia e aquilo que o envolve, alinhavando múltiplas temporalidades. Diversas vezes, opera no sentido de tornar novamente visível algo que já não mais existe. É o caso do monumento ao centenário da imigração israelita para o Brasil, localizado junto ao Parque Farroupilha, em Porto Alegre. Neste trabalho, executado em 2004, Venzon reproduz em concreto e quartzito rosa um detalhe da fachada do antigo cinema Baltimore. Durante décadas o pequeno complexo de salas de exibição funcionou na avenida Oswaldo Aranha, no bairro Bom Fim, um dos eixos da comunidade judaica na capital sul-rio-grandense. Hoje o Baltimore não existe mais; antes dele, no mesmo lugar, foi erguida a primeira escola semita de Porto Alegre; atualmente, a área é ocupada por um estacionamento. Nesse anacronismo de forte carga simbólica, o memorial erigido a partir do fragmento pode nos reportar tanto a possíveis momentos vividos naquele ambiente, como à fragilidade de nossas políticas de preservação.
A consciência histórica e a crítica às relações de poder percebidas nos espaços urbanos despontam em vários trabalhos de Venzon que, na década de 1990, chegou a estudar Arquitetura e Urbanismo, embora sem concluir. Na série Fechamento, por exemplo, realizada entre 2003 e 2006, ele fotografou avenidas, prédios, conjuntos habitacionais que haviam sido segregados do olhar do transeunte por meio de madeirites. Madeirite é a denominação usual empregada para indicar um tipo de compensado precário, tradicionalmente adotado na construção civil, sobretudo para isolar as áreas que estão sendo edificadas. Com o objetivo de chamar a atenção do público, o madeirite é quase sempre pintado de fúcsia, um rosa forte, próximo ao magenta. Venzon incorporou esses elementos de tal forma à sua poética, que hoje constituem uma verdadeira “marca registrada” do artista. Eles estão nos já citados Fechamentos, em instalações e obras in situ apresentadas em várias cidades do país, e na pungente série Cidade sem Face (2005), realizada em parceria com Igor Sperotto. Nessa última, Venzon fotografou pessoas junto a calçadas, diante de casas quase sempre com janelas e portas fechadas. Todas aparecem de corpo inteiro, sozinhas e rígidas, posando para o fotógrafo. Entretanto, elas não somente são destituídas de identidade, como se encontram duplamente apartadas. No lugar do rosto, trazem um cubo com o característico rosa, que lhes esconde a face e amortece a percepção; ao fundo, as aberturas das casas encontram-se cerradas e muitas vezes em degradação. Em sua economia formal e no aparente ludismo, Cidade sem Face escancara o isolamento humano diante de uma paisagem citadina também solitária e esquecida.
Se a vibrante cor fúcsia, nesses trabalhos, parece amainar o impacto das críticas de Venzon, nas obras mais recentes, que integram a mostra Babilônia, ela é inserida como um componente de saturação e, claro, de identificação do próprio artista.
Entre a realidade e o devaneio, Babilônia foi uma das grandes cidades da Antigüidade. Conta-se que, entre seus muros, para a população abastada, o prazer imperava sem limites. Daí talvez o motivo de ela ter sido, reiteradas vezes, amaldiçoada por profetas bíblicos, como se verifica no Antigo Testamento. Porto Alegre, como tantas cidades espalhadas pelo mundo, também tem a sua região “babilônica”. Trata-se da zona em torno da avenida Farrapos. Se de dia ela intimida os sentidos, com seus edifícios acinzentados e a excessiva fumaça dos carros, de noite ela os entorpece. Luzes, movimento, deleite e licenciosidade emanam das casas noturnas que fazem a fama do local. Foi próximo dali, no bairro Navegantes, que Venzon cresceu; foi convivendo desde cedo com a panfletagem, com a visão da prostituição e do néon que parte importante de sua sensibilidade se formou.
Babilônia é justamente carregada dessas reminiscências. Estabelecendo um fio condutor com a exposição Boates, apresentada no Margs em 2006, ela se caracteriza pela presença de espelhos, lâmpadas vermelhas, confetes, muita purpurina e cor, além, é claro, de centenas de estilhaços do cotidiano. Ali estão recortes de revistas e cartazes, imagens oriundas da indústria cultural, flores artificiais, tecidos estampados, vetustas fotografias, pequenos objetos de gesso e de plástico, placas de sinalização de ruas, fitinhas multicoloridas de Nossa Senhora dos Navegantes... Na orquestração desse hiperbólico universo kitsch, Venzon insere alusões à própria história da arte, bem como nomes de boates tradicionais e palavras ou frases que potencializam distintos significados, muito além daqueles rapidamente apreendidos. Nesse processo, uma vez mais o seu olhar atravessa o objeto em diferentes tempos; uma vez mais ele relaciona sujeito e lugar, fragmento e memória, artefato e fantasia, num discurso visual exuberante e contemporâneo. Como os lugares que referencia.
Março/2010.
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¹Paula Ramos é Crítica de arte, Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS/2007).