Oh, Senhor Dono da Casa!

*Maria Helena Bernardes




------------------------------------------------Galaxy string 4 (fonte Nasa)
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Eram meados de junho. Não fosse o calendário astronômico, nada no crepúsculo morno daquele sábado denunciaria a entrada do inverno. Desde cedo, o ar quente prenunciava o fluxo de energia que desencadearia os acontecimentos da noite por vir, estendendo-os madrugada adentro. Entretanto, tudo aconteceria a partir do instante em que as pessoas decidissem vir para a praça central de Mostardas.


No centro da praça, a vendedora de crepes já estava a postos, instalada sob o caramanchão iluminado, assessorada por um fogão e uma geladeira antigos, agregando um tom caseiro à cena ao ar livre. Espalhados em torno do caramanchão, nossa expectativa crescia. O grupo de coreógrafos, atores e músicos dirigido por Elcio Rossini principiava a se aquecer sem ter certeza se iria ou não tomar parte dos acontecimentos da noite. Tudo ainda estava tão quieto!


Finalmente, as pessoas começaram a se deslocar da festa paroquial em direção à praça, conversando aos pares, dando as mãos às crianças que logo se desprendiam a correr em gritaria. Gradualmente, formava-se uma concentração animada, alimentando uma atmosfera vibrante de festa noturna. Para nosso entusiasmo, os passeios se cobriam com toda a sorte de transeuntes: velhos, jovens, adultos e crianças, homens e mulheres que iam e vinham sob as guirlandas de lâmpadas incandescentes.


Certas situações têm o poder de nos contagiar com uma enorme vontade de viver a vida: o primeiro dia de uma viagem de férias, o aroma forte de um café recém passado, ou, ainda, a visão dessas pessoas descompromissadas, caminhando às dezenas pelas ruas de Mostardas, leves como se a vida fosse sempre assim, fluente e fácil, e como se, bruscamente, pudesse aparecer do nada, vindo do canto escuro da praça, avançando pelo meio das árvores, o Terno de Reis de Mostardas, que surgia cantando em uníssono, ritmado por uma toada, saudando o público de surpresa.


Todos os olhares e ouvidos se voltaram em direção à música. Crescia o canto vindo da esquina em intensidade e volume, violão e acordeon acompanhando as vozes dos cantores que entoavam uma saudação de chegada. As pessoas se agitavam. Entusiasmados com a confirmação da aparição, Elcio e seu grupo misturavam-se também ao público, acercando-se para receber o trio. Os mostardenses mais velhos estavam incrédulos diante da visão extemporânea do Terno de Reis.

Os Reis Magos em junho, o verão dentro do inverno e os televisores desligados em casa, num sábado à noite! Tudo sublinhava o estranho arroubo de energia que cruzava a praça em correntezas.


A noite começava.


“Oh, senhor dono da casa!” - evocavam os três cantores, abrindo o refrão principal da toada. O mais velho deles liderava, risonho e com gestos amplos, lançando improvisos aos outros dois que arrastavam a repetição chorosa, acompanhando-a ao violão. “Abra essa porta, oh senhor dono da casa!” - as pessoas repetiam, entoando em coro o refrão já familiar.


Alguns moradores cochichavam, perplexos. Há quanto tempo não se via o Terno de Reis nas ruas de Mostardas! O trio seguia à risca a tradição e puxava o povo em procissão pelas ruas do centro, dirigindo-se às casas e batendo às portas dos desavisados.


“Oh, senhor dono da casa, abra essa porta!” – reiniciava a toada. Normalmente, o Terno seria acolhido com guloseimas, mas, nessa noite, as pessoas não estavam preparadas e riam de alegria e desconcerto diante da brincadeira profana que contara com a conivência do padre da paróquia central. Os ‘donos da casa’ abandonavam prontamente salas e jantares aquecidos para engrossar as fileiras do Terno de Reis, entoando refrões no coro crescente que seguia pelas ruas.


Enquanto isso, Elcio e seu grupo acompanhavam o fluxo e entrelaçavam a multidão com seus movimentos, deslizando em zigue-zague, para a frente e para trás, como se costurassem a turba e alimentassem a energia que perpassava os corpos, cantando em marcha.


No passado, a tradição açoriana do Terno de Reis repetia-se a cada Natal, mantida por cantores que se sucediam desde tempos antigos. Naquela época, o Terno costumava percorrer toda a cidade, em trajetos maiores do que o deste sábado. Agora, os romeiros deveriam abreviar o percurso para retornar à praça, dando seqüência aos acontecimentos ainda por vir naquela noite.
A idéia de reviver tudo isso partira de Elcio Rossini. Desde sempre encantado pela estreita faixa litorânea onde fica Mostardas, Elcio foi buscar a tradição do Terno de Reis ainda sobrevivente na cidade. Temporariamente suspenso por falta de estímulo ou de consonância com os novos tempos, ainda assim, os elementos necessários ao Terno estavam lá, frescos na memória de todos. Entre conversas e saraus, os cantores do Terno deixaram-se convencer por Elcio a interromper sua rotina e a ensaiar um acontecimento natalino em pleno mês de junho. Seguiram-se alguns encontros em que Elcio aprofundou-se no repertório do Terno e os cantores tomaram pé do trabalho dirigido por ele. Nasceu, assim, o encontro improvisado no qual cada uma das partes - de um lado, o Terno de Reis de Mostardas e, de outro, a trupe de atores, músicos e coreógrafos de Porto Alegre - traria para a praça o que tivesse de mais próprio e amadurecido.


A procissão se concentrava em torno do caramanchão onde a vendedora de crepes encerrava o trabalho da noite.


A cantoria atingia seu ápice, inebriando a todos, fiéis e incrédulos, mostardenses e portoalegrenses, litorâneos e citadinos, que seguiam os incansáveis trovadores. Sutilmente, sem que se percebesse a passagem entre um momento e outro, o grupo de Elcio Rossini integrava-se à sonoridade da noite, somando instrumentos e canções, arrastando o povo em danças estranhas, coreografadas sobre as canções do Terno e dos músicos da trupe, agora, perfeitamente entrosados. A multidão delirava, dançando e cantando até o ponto em que a turbamulta se tornou um só corpo e se fundiram as estranhezas, somando-se as diferenças em acordos e desacordos. O ar amarelado das lâmpadas incandescentes ressoava, hora áspero, ora harmônico, pairando sobre a multidão inebriada que inundava a pequena praça central de Mostardas.
Em certo momento, o Terno reassumiu a liderança, tomando novamente o rumo da rua. Dessa vez, o destino era a casa de um líder político local, que preparara uma ceia para músicos e atores. Embalada pela euforia da noite, a multidão não abandonava o Terno e voltava a entoar o refrão: Oh senhor dono da casa, abra essa porta! O inevitável aconteceu: a porta foi aberta e, diante da entrada do Terno e atores, seguiu-se a multidão em cantoria, galgando escadas e lotando os dois andares do sobrado para susto dos proprietários que, não tendo como contornar o imprevisto, serviram do que tinham e do que não tinham para aquela massa eufórica, que não cessava de entoar os antigos refrões.


Ouviam-se as toadas e o burburinho generalizado em frente à casa do político onde jantavam músicos, atores e metade da população de Mostardas. A outra metade permaneceria na calçada, em frente à entrada, ao longo de toda a madrugada, como a implorar: Oh, senhor dono da casa, abra essa porta!


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Certa vez, ouvi de uma astrônoma uma explicação sobre a trajetória da luz no vácuo, seu fluxo constante e ideal na ausência de qualquer atrito. A luz, explicava ela, percorre o vácuo em certa velocidade; logo, a duração do percurso é proporcional à distância entre a origem e o destino. Para que pudéssemos compreender o fenômeno inapreensível, a cientista dizia que, por meio de telescópios ideais apontados para a Terra a partir de corpos distantes no espaço, poderíamos reencontrar imagens de qualquer momento já passado em nosso planeta. Assim, a partir de certo ponto do cosmo, veríamos a imagem de Jesus galgando o Monte Sião. De outro ponto, mais remoto, assistiríamos à morte de um caçador do Paleolítico e, retomando o caminho de casa, observaríamos o primeiro vôo de certo pássaro atualmente extinto, um crime desapercebido em plena luz do dia ou, com bastante sorte, avistaríamos três homens mirando um ponto alto no céu do deserto, seguindo a trajetória de um objeto cadente que faria a fama do Dia de Reis.

Salvo os temidos buracos negros, todos os fatos já produzidos seguem sua eternidade de imagens. Recentemente, tornou-se possível retê-las aqui na Terra, segundo a conquista dos irmãos Lumière e de Bioy Casares, com sua melancólica Invenção de Morel. A disponibilidade dessas imagens no espaço cósmico, entretanto, instiga a vontade de avançar infinitamente na distância para recuar infinitamente no tempo, rumo a um passado anterior a nosso próprio passado, à anterioridade absoluta a todos os conceitos e consciências. Era o que dizia a astrônoma, guiando-nos no ambiente abissal em que se deslocam as imagens de nossas vidas e mortes, compondo ciclos luminosos de aparição e desaparição.

Em certos momentos, as grandezas incomensuráveis da ciência vêm amparar os desconcertos da rotina. A hipótese destas imagens a errar pelo universo produz algum conforto quando consideramos que, mais cedo ou mais tarde, o Terno de Reis deixará definitivamente as ruas de Mostardas e já não se repetirá o encontro inebriante daquela noite de junho, consumida pelo fluxo de tempo que lhe deu graça e cadência únicas.

Reconforta também pensar que certos episódios, jamais imaginados, possam se produzir desde que alguém inicialmente se disponha a vencer a pequena distância entre Porto Alegre e Mostardas e a contagiar outras pessoas com a proposição de uma festa extemporânea. A seguir, tudo já se terá passado e nos restará vencer a distância entre a Terra e a Lua, entre o Sol e as Plêiades, entre nossa galáxia e a seguinte, em uma perseguição que poderá se desdobrar, sucessivamente, até os quasares mais longínquos.

O desembarque valerá a pena se dispusermos dos instrumentos adequados e de nitidez suficiente para rever a procissão em torno da praça a acordar os desavisados com um clamor inaudível: “Abra essa porta, oh senhor dono da casa. É o Terno de Reis que chega para lhe saudar!”.
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«Esse texto foi escrito para o amigo Élcio Rossini, que compartilhou com um grupo de amigos um experimento realizado por sua trupe teatral em conjunto com o Terno de Reis, de Mostardas, em uma noite cálida de inverno. O texto permaneceu inédito e integra uma série chamada "Crônicas à Distância", escrita durante um período em que vivi fora do país e que intensificou, a meus olhos, o brilho de experiências tão brasileiras como esta». (Maria Helena Bernardes - agosto, 2008).

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*Maria Helena Bernardes é artista plástica, ensaísta, professora e membro da Arena, associação dedicada a promover debates, trabalhos e publicações de artistas, assim como cursos em História e Teoria da Arte, em Porto Alegre, RS. É autora do livro Vaga em Campo de Rejeito, (Escrituras, 2003), publicado por Areal, projeto realizado em parceria com André Severo.

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